Ser Igreja de Francisco em tempos de quarentena

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Papa Francisco caminhou pelas ruas desertas de Roma

Pe. Nelito Dornelas Assessor das CEBs Regional Leste 2

Estamos vivendo tempos muito difíceis com a rápida proliferação do COVID-19, a pandemia do coronavirus. Há muita informação sobre o que está ocorrendo mundo à fora e muita politização e espetacularização de uma problemática tão séria como esta. Sabemos falar muito pouco sobre esta pandemia, pois ainda não há uma vacina contra este vírus.

Primeiramente, apresento-lhe os números dos infectados por outros vírus no atual momento, baseados nos dados da OMS, publicados na revista La Civiltà Cattolica de janeiro de 2020, em artigo do Pe. Andrea Vicini.

“Estima-se que, em 2019, 37,9 milhões de pessoas no mundo foram testadas positivas com o vírus HIV. Se considerarmos as estimativas gerais desde o início da pandemia, as pessoas soropositivas são 74,9 milhões, com 32 milhões de mortes causadas pela AIDs. Calcula-se que, em 2018, 3,2 bilhões de pessoas vivam em áreas de risco de transmissão da malária em 92 países do mundo, especialmente na África subsaariana, com 219 milhões de casos clínicos e 435 mil mortos, dos quais os 61% eram crianças menores de cinco anos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 10 milhões de pessoas em todo o mundo adoeceram de tuberculose em 2018, com mais de 1,2 milhão de mortes, dos quais 11% entre crianças e adolescentes com menos de 15 anos”.

Estes dados nos alarmam. Mas nos vem uma questão: por que essa informação não desperta o nosso interesse?

O que nos interessar não é ter audiência, mas sim a dar dignidade a este momento, a ajudar os outros. Este é um grande momento em que podemos expressar a nossa capacidade de coesão social. Este tempo deve ser enfrentado com criatividade e generosidade. Não estamos em guerra. Não é preciso inventar um “inimigo”. Temos que refutar essas retóricas. Estamos sim diante de uma das mais graves emergências sanitárias global. Estamos colhendo os frutos amargos que este modelo de economia mundializado e concentrador plantou. O Papa Francisco o denunciou afirmando categoricamente que esta economia mata.

Esta é a primeira pandemia no tempo da hiperconexão física, graças à democratização das viagens aéreas intercontinentais. Por que a pandemia se espalha? Porque as pessoas viajam. Então, as inúmeras viagens espalharam o vírus. Os aviões levam você de um lado ao outro do mundo em não mais do que 12 horas, e, assim, uma infecção contraída em um lugar do planeta chega ao outro lado do mundo em meio dia. Isso deve nos fazer refletir sobre como o mundo mudou e, portanto, sobre como é absolutamente urgente e necessário pensar no nosso modo de considerar o fenômeno da pandemia.

Uma contribuição da psicanálise

Segundo o psicanalista Massimo Recalcati, “O pânico, como reação coletiva, surge por infecção psíquica e não viral. As tropas saem em debandada quando seu líder é abatido; a massa reunida em uma praça se desfaz de repente quando a presença de um perigo iminente é anunciado. O corpo coletivo tomado pelo pânico se desmembra; a massa em pânico é uma massa despedaçada, fragmentada e desorientada. Perdeu a unidade ilusória que existe quando nos sentimos unidos e identificados pela mesma insígnia. O pânico corrói a solidez eufórica da massa, levando-nos de volta à nossa individualidade indefesa”.

O pânico nos deixa cegos: a massa que se desfaz fugindo o mais longe possível da fonte da ameaça sempre tende a alimentar o caos e a destruição. O problema do vírus é complicado pelo fato da fonte da ameaça nunca poder ser localizada, e se espalha entre nós de maneira imprevisível.

O pânico sempre alimenta desmedidamente o pânico. É o que está acontecendo com a epidemia de coronavírus.

A euforia provocada por sentir-se parte de um corpo único é transformada traumaticamente em seu oposto: cada indivíduo tenta se salvar vendo seu semelhante já não mais como prolongamento da própria identidade, como acontece na massa compacta, mas como uma ameaça mortal.

O que nos espera é então um grande teste da civilidade: conter as reações irracionais de pânico não significa negar a gravidade da situação, mas tentar transformar a massa agitada e perdida do pânico em um conjunto coletivo civil, capaz de reação racional à ameaça incumbente.

A força da palavra e da boa comunicação

O que nos resta fazer neste contexto? Resistir à tentação do pânico, responder à ameaça com um senso de responsabilidade, não apenas considerando o horizonte da própria vida individual, mas percebendo que participamos conscientemente de uma ação civil coletiva que envolve a vida inteira da sociedade, a partir de nossa comunidade. A solidariedade digital é muito importante, mas não se basta.

Usar as palavras e as imagens para construir pontes entre nós e não como pedras contra países, culturas, segmentos sociais, os outros, os diferentes.

Devemos aproveitar deste momento para construirmos uma grande unidade: as divisões devem desaparecer. A comunicação pode ajudar a difundir uma mensagem que ajude a ter comportamentos virtuosos.

Nesse sentido, as palavras podem ser usadas viralmente como pedras, podem ser lançadas contra as pessoas em seu próprio benefício. Basta elevar o tom para ser ouvido neste momento em que as pessoas têm medo. Incitar no medo das pessoas hoje é fácil, produz consenso, mas é totalmente irresponsável. Também assistimos a uma contínua retórica da guerra, como se estivéssemos em guerra, como se fosse preciso uma atitude militar, militarista. Não deve ser esta nossa postura.

Hoje a palavra da informação é chamada a construir pontes; pontes invisíveis entre as pessoas que estão fechadas em casa, mas precisamente por isso mais dispostas à comunicação, à informação, portanto, a serem sujeitas à influência das palavras. Por isso, hoje é preciso responsabilidade. Para mim, o modelo do jornalista é o médico. São os médicos que estão tratando as chagas, as feridas.

Papa Francisco compara o comunicador ao bom samaritano, àquele que cura as feridas, que, acima de tudo, as toca. Com coragem, com força, com decisão, com verdade, o objetivo deve ser o de tocar o outro para curá-lo. Portanto, certamente, trazendo à tona os problemas, denunciando se necessário, mas não para dividir o país, as pessoas, mas sim para uni-los.

Uma mensagem de esperança

Nosso slogan pode ser “Tudo ficará bem”. Mas para afirma-lo temos que discutir sobre as causas que deixaram as coisas ruins.

Este é um tempo que deve ser usado para uma profunda reflexão sobre este tempo que vivemos.

Porque não está indo bem? O Papa Francisco tem nos ajudado a refletir sobre isso. Refletir sobre o nosso tempo nos ajudará a entender melhor a Laudato si’.

Neste momento são necessárias mensagens de esperança. E também estou convencido de que sairemos desta. Estouconvencido da necessidade de alimentar a esperança para seguir em frente. Certamente, porém, é necessária uma reflexão crítica. É importante entender por que tudo isso aconteceu, até porque o fato de ter acontecido agora não significa que não poderá acontecer em um futuro próximo. Portanto, devemos orientar a nossa reflexão sobre as causas, mesmo remotas, que fizeram com que esse vírus tenha se espalhado. Há algo no nosso cuidado da casa comum, na nossa relação com a natureza que não funciona. A ciência e os povos originários podem nos ajudar a compreender que não podemos seguir em frente assim.

Ainda sobre o papa: alguns  escreveram que o Ocidente renunciou à sua liderança cultural.      A Laudato si’ e o Documento sobre a Fraternidade são os terminais de um pensamento forte que oferece uma bússola a todos.

Francisco tem buscado o contato com várias pessoas, de vários continentes, de diversas religiões ou outras pessoas não religiosas.

O que mais nos impressiona é que o mundo não tem liderança. Isto é, não existem figuras no mundo que possam ser considerados líderes de impacto e de valor global, exceto uma. A única pessoa que emerge a partir desse vazio é o papa, o Papa Francisco. Repito: crentes, não crentes, crentes de diversas religiões reconhecem nele a única figura de impacto global. Felizmente, existem muitos líderes de impacto local, nacional. Mas o único líder de valor mundial continua sendo Francisco, porque a sua mensagem é recebida globalmente e é uma mensagem de unidade e de força neste momento difícil. Mas também é uma mensagem que soube tocar nos temas diretamente ligados a esta pandemia.

É evidente que é preciso pegar novamente nas mãos a encíclica Laudato si’, encíclica sobre a casa comum que não é apenas uma encíclica sobre o ambiente, mas que também diz respeito à doutrina social da Igreja.

Ela leva a compreender as questões ecológicas que têm um impacto muito forte e devastador sobre a vida nesta nossa Terra e sobre a justiça social.

Essa encíclica é um ato de liderança global que supera também as fronteiras entre crentes e não crentes, e indica uma direção. O segundo elemento da reflexão do papa que eu considero muito pertinente para este momento histórico é o da fraternidade humana. Nunca como neste momento, percebemos que as fronteiras, de fato, não têm valor, precisamente porque o vírus as cruza com grande facilidade. Existe uma humanidade que nos faz nos sentir como irmãos, porque compartilhamos exatamente o mesmo problema.

A Igreja é movida pelo Espírito Santo

O Patriarca de Antioquia, Ignácio IV, tem uma belíssima visão, na qual apresenta a ligação intrínseca existente entre a Igreja e o Espírito Santo.

“Sem o Espírito Santo, Deus fica distante, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja é apenas organização burocrática, a autoridade é tirania, a missão é propaganda, a vida cristã é uma moral escravizante. Porém, nele, numa unidade indissociável, o mundo é libertado e geme na descoberta do Reino, o homem está em luta contra a carne. Deus está aqui, Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é uma força vivificadora, a Igreja significa a comunhão Trinitária, a autoridade é serviço libertador, a missão é Pentecostes, a liturgia é memória e antecipação, a ação humana é coroada de divindade”.

A Igreja está no mundo e participa da mesma história comum

A Carta de Diogneto escrita no segundo século da era cristã apresenta, de forma clara sobre a vida dos primeiros cristãos e cristãs.

“Os cristãos, efetivamente, não se distinguem dos outros homens nem pelo país de origem, nem pela linguagem e nem pela maneira como se vestem, porque não habitam em cidades que consideram exclusivamente suas, nem falam um dialeto especial, nem levam uma vida isolada. Instalando-se nas cidades gregas ou bárbaras, segundo a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes locais nas vestimentas, na comida e na convivência, mostram a admirável e paradoxal condição de sua cidadania, de acordo com sua confissão. Residem em suas próprias pátrias, porém, como forasteiros: cumprem todos os deveres de cidadãos e suportam todas as cargas como estrangeiros; qualquer terra estranha é pátria para eles e toda pátria é terra estranha. Casam-se como todo o mundo e concebem filhos, porém não abandonam os recém-nascidos. Estão dentro da carne, porém não vivem segundo a carne. Passam o tempo sobre a terra, porém têm os direitos da cidadania nos céus. Obedecem às leis estabelecidas, porém com suas vidas superam as próprias leis. Amam a todo o mundo e todos os perseguem. São

desconhecidos e, não obstante, são condenados. São mortos e assim se lhes faz obter a vida. São pobres e enriquecem a muita gente. Faltam-lhes tudo e têm abundância em tudo”.

Por uma igreja comunitária, sinodal e em saída

Uma igreja sinodal não tem pressa e nele cabem todos.

Encarnada no Mundo, na História, por isso, possui um passado, um futuro e vive o presente procurando transformá-lo.

Pode-se reconhecer tal fato de duas formas:

A igreja deve estar estreitamente ligada aos sofrimentos e alegrias de cada um de seus membros (1Cor 12, 25), reergue “as mãos enfraquecidas e os joelhos calejados” (Hb 12,12), preocupa-se com todos e com a história pessoal de cada um, sustenta-os e corrige-os sem cessar. Ela é peregrina, caminhando em direção ao seu destino. Ela caminha junto com as convulsões da aventura humana, nos sofrimentos e nas interrogações de cada época. Ela está sempre em atitude de conversão ao Espírito.

Pelo fato de estar, com todas as pessoas, envolvida na História, a Igreja não tem respostas pré- fabricadas. Ela não saiu prontinha das mãos de Deus. Ela procura, pelo mundo afora, as respostas necessárias para cada época e cada povo. Ela questiona-se pela Palavra de Deus e deixa-se guiar pelo Espírito em direção à Verdade. Comungar com Cristo faz com que nos tornemos, pouco a pouco, pessoas eucarísticas que se reúnem em comunidades eucarísticas.

A Igreja, comunidade dos seguidores e das seguidoras de Jesus Cristo, tem sua razão de ser por Cristo, com Cristo e em Cristo, como Igreja Eucarística, símbolo da comunhão entre seus membros e de unidade. A Igreja partilha o pão, carrega o peso dos fracos, anuncia e denuncia, faz-se sal, fermento e luz, Igreja samaritana, Igreja de crucificados, Igreja de ressuscitados, uma Igreja sempre em saída.

A Igreja, nascida do coração de Jesus Cristo, quer na manjedoura de Belém, ou no Calvário em Jerusalém é a Igreja da comunhão e da unidade com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo. Quer na Sinagoga de Nazaré, ou no Cenáculo, no dia de Pentecostes, é uma Igreja que fala todas as línguas, respeita todas as culturas e une as diferenças pela força do Espírito derramado nos corações de seus fieis.

Pode-se afirmar que Jesus queria sim uma Igreja, expressão de um só coração e uma só alma entre seus membros, sob um só Pastor e formando um só rebanho. Ao escolher dentre os discípulos um grupo de Doze (Mc 3,14-19), que enviou para pregar o evangelho, curar as enfermidades, expulsar as forças do mal, quis que estes testemunhassem a mesma unidade existente na Santíssima Trindade. Esses Doze são o embrião da Igreja que, depois da ressurreição de Jesus, são confirmados pelo Espírito Santo de modo especial para testemunhar a fidelidade de Jesus ao Plano de salvação da humanidade que nasce do coração do Pai (Mt 28,16-20; Lc 24,36-53; Jo 20,19-29).

Entre os Doze, Pedro tem um papel de destaque. Ele é o porta-voz, a pedra que é, ao mesmo tempo, pedra angular para sustentar a construção como gruta para acolher e proteger o rebanho. É Jesus quem lhe confia uma missão especial em relação aos outros membros do grupo. Em Lucas, o nome de Apóstolo está reservado aos Doze, e nem mesmo Paulo o recebe (Mt 16,16-19; Lc 22,32; Jo 21,15-19

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