
A Abundância de bens como gaiola de ouro
“A vida de um homem não consiste na abundância de bens”, diz o texto do Evangelho escolhido para o 18º domingo do tempo comum do ano C (Lc 12, 13-21). Quem não a deseja com toda sofreguidão – essa“abundância de bens”? Bens, mais bens, sempre mais bens! O prazer de ir às compras como uma forma de lazer por excelência. O lucro a qualquer preço e a acumulação de renda e riqueza, combinados e entrelaçados, constituem a pedra angular do sistema político e econômica que emerge com a Revolução Industrial. O aumento sem precedentes da produção e da produtividade redobra o instinto de ganância ambição. Eleva o desejo a uma potência nunca antes experimentada. O ser cede o lugar ao ter e aparentar.
De acordo com os economistas clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, nasce a noção de capital e de sistema capitalista de produção, em particular com a obra em cinco volumes sobre A riqueza das nações, de Smith. Aproximadamente um século mais tarde, semelhante dinamismo econômico ganharia uma nova compreensão com os escritos de Karl Marx e Friedrich Engels e com a publicação d’A ética protestante e o espírito do capitalismo, obra igualmente clássica de Max Weber. Este mesmo autoriria cunhar a expressão “gaiola de ouro” para designar o bem-estar egocêntrico e individualista da vida moderna, recheada de inovações tecnológicas para todos os gostos e alguns bolsos.
As palavras do Evangelho não deixam de jogar viva luz sobre essa “gaiola de ouro”, tanto de ontem quanto de hoje. De fato, diz o homem rico da parábola contada por Jesus: “Já sei o que vou fazer. Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo meu trigo, junto com meus bens”! O homem teve uma safra surpreendentemente positiva. Produziu muito acima de suas necessidades. Qual a solução? Ampliar os armazéns, guardar, acumular! Em seguida, diz para si mesmo: “Descansa, come, bebe, aproveita”! Nos tempos atuais, a solução certamente se torna bem mais complexa. Talvez vender a produção excedente pelo melhor preço do mercado internacional, colocar o dinheiro no banco, investir nas ações da bolsa de valores, entrar no jogo financeiro do cassino mundial.
Entra em cena a voz silenciosa de Deus. Voz que mora na consciência de toda pessoa humana: “Louco, insensato”! O homem não se dá conta que, ao erguer celeiros maiores, está construindo a própria “gaiola de ouro”. De que adiante toda essa riqueza acumulada, se ela traz embutida os germes da escravidão e da corrupção? Fartura estéril de um prisioneiro. Prisioneiro em dupla dimensão. Em primeiro lugar, porque os bens o manterão permanentemente acorrentado à preocupação do proprietário que, ao esconder a riqueza, atrai sobre si a cobiça dos vizinhos e a astúcia dos ladrões, sem falar da traça que a corrói. Como garantir a segurança? Depois, prisioneiro do próprio desejo. Riqueza chama riqueza, bens somente se satisfazem com novos bens. “Quem mais tem mais quer” – diz com razão o ditado popular.
O rato caiu na ratoeira, o homem caiu na cilada. A acumulação oculta armadilhas imprevistas. Existe saída para essa gaiola revestida de ouro? O desafio está na superação do sentido de “viver bem” para o sentidobem mais profundo do “bem viver”. No primeiro caso, trata-se de desfrutar de forma egoísta, predatória e inescrupulosaos bens que a natureza e a tecnologia colocaram à disposição dos seres humanos. No segundo caso, a fortalezacerrada dos bens guardados se abre à partilha, à distribuição, à solidariedade. Descortina-se o horizonte da responsabilidade de toda pessoa, grupo, sociedade, povo, nação, enfim, da humanidade como um todo. Ou seja, todos nos tornamos responsáveis em um tríplice rumo: com relação à preservação do meio ambiente, com relação aos pobres e excluídos do planeta, com relação às gerações futuras. Enquanto a noção de “viver bem” tem o olhar preso ao próprio umbigo, e ao próprio prazer, o conceito de “bem viver” mira sua atenção para o cuidado com a vida em todas as suas formas (biodiversidade) e para a continuidade da história – uma história justa, fraterna e solidária.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 1º de agosto de 2019
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As verdadeiras bases da vida.
O evangelho lido pelas comunidades nesse 18º domingo comum do ano C (Lc 12, 13 – 21) continua contando a peregrinação de Jesus a Jerusalém. Nesse itinerário o capítulo 12 de Lucas recolhe vários ensinamentos de Jesus, provavelmente, dados em momentos diversos de sua vida. No caso dessa cena, Jesus dá o seu ensino a partir da provocação de alguém do meio do povo. Já vimos isso em 10, 25 e 11, 45. Agora, alguém pede que Jesus sirva de juiz em uma questão de herança entre dois irmãos. No mundo de Jesus, era costume os rabinos religiosos resolverem questões como essa. Mas, Jesus se nega. Seria um grande erro pensar que Jesus se nega porque a justiça não o interessa ou porque ele não quer se meter em questões sociais e políticas. A palavra “Quem me constituiu juiz entre vocês?” é bem mais uma rejeição a ficar no plano da lei. Jesus quer ir mais além. Vai à raiz do problema. Mostra que não se tratava de uma questão de justiça e sim de ambição. É deste problema que ele trata.
Provavelmente, a ambição era um problema nas primeiras comunidades e Lucas quer que, nesse ponto, as pessoas sejam muito claras. Mais do que outros evangelistas, Lucas é radical em apontar: a ambição, a busca de riquezas é obstáculo real e imenso ao discipulado. Cada pessoa tem de fazer um projeto de vida e esse projeto não pode ser baseado na avidez.
Ainda hoje, muitas famílias se dividem e se dilaceram por problemas de herança. Isso existe muito na classe rica, mas não somente. Vivemos em uma sociedade na qual, cada vez mais, as pessoas se dividem em classes sociais. Há pessoas que só veem os outros de acordo com os que elas possuem ou não possuem.
Quando, aos 18 anos, entrei no Mosteiro para ser monge, havia uma regra que proibia a gente de chamar qualquer coisa de “minha”. Mesmo o que era de uso pessoal se dizia “nossa”. Nesse evangelho, Jesus conta uma parábola sobre um rico. Nessa história de Jesus, o mais aparece é justamente o pronome meu: “meus frutos, meus cereais, meus celeiros, meus bens…”. Lucas não diz que o tal rico (archom ou pessoa importante) da parábola tenha obtido a riqueza de forma desonesta. Não. Ele pode ter sido muito correto na forma de ficar rico (um rico totalmente honesto e justo é coisa muito rara, mas, mesmo se os pais da Igreja ensinavam que todo rico é desonesto e injusto, vamos admitir que seja possível um rico honesto e justo). O problema é que, de acordo com a parábola contada por Jesus, esse tal rico só se preocupa em “comer, beber e aproveitar da sua riqueza” (v. 19). O tal rico não se propõe a partilhar. Ele só quer acumular e gastar consigo mesmo. Diferente se ele juntasse os amigos e amigas para se banquetear. A única preocupação dele é gozar sozinho o que tem. Aí Deus condena e vem buscar a sua vida naquela mesma noite. E Jesus conclui a parábola dizendo: “isso acontece com quem junta só para si e não para Deus”. Juntar para Deus é repartir com os outros e viver a riqueza com os demais. A parábola se conclui pedindo que sejamos ricos não cada um para si mesmo, mas para Deus.
Essa forma do evangelho falar (ser rico para Deus) se traduz hoje em ser rico/a de amor, de amizade e solidariedade às pessoas. Toda a tradição bíblica ensina isso: “Quem é solidário com o próximo empresta a Deus” (Prov 19, 17 e Eclo 29, 8- 13). Isso deu o ditado popular: “Quem dá aos pobres, empresta a Deus!”.
A atualização dessa palavra não pode ser apenas individualista. Não é só que não adianta se preocupar com riqueza, porque quando menos se espera, morre. Essa era a imagem que vinha dos livros da Sabedoria e Jesus a usou, mas para ir além disso. O contexto dos evangelhos não era individual. Era coletivo. O contexto de Lucas era escatológico, isso é, a comunidade estava convencida da vinda próxima ou imediata do reino.
Nessa parábola, a crítica que Jesus faz à ambição de riquezas é feita no contexto dessa pressa da vinda do reino. Os primeiros cristãos pensavam: Não vale a pena acumular riquezas se o reino de Deus vai chegar de repente e está próximo. A manifestação da vida de Jesus faz com que todo esforço para nos prender ao sistema do mundo é ilusório. Toda a Bíblia repete: acumulem tesouros que não podem ser roubados… O homem acumulou e Deus lhe disse: Insensato. Hoje mesmo tua alma será pedida. Para quem ficará os teus bens?
Hoje temos de ir além dessa perspectiva individual. Na internet o Observatório do Estado do Planeta, organismo internacional ligado à ONU avisou nesse 25 de julho que nesse dia nós já esgotamos todos os recursos do planeta que seriam necessários para todo o ano. Isso significa que a partir desse dia, nós estamos gastando o que não temos. Os recursos do planeta já foram gastos. Essa notícia que se leu na internet chamou a atenção de pouca gente. No entanto, é um sinal. Sinal de que esse sistema (o Capitalismo que domina o mundo) é insustentável e sem saída. É uma loucura prosseguir esse caminho. A terra está com seu sistema de vida ameaçado e a própria humanidade se autodestrói – o fato de que 1% da humanidade acumula o equivalente a quase metade da população do planeta provoca um desequilíbrio que é social, político, ecológico e cultural (espiritual). É preciso que os discípulos e discípulas de Jesus tenham a sensatez de ouvir esse evangelho a partir dessa advertência de Jesus no evangelho e que hoje é voz de Deus através da realidade da Terra. É preciso mudar o rumo desse desenvolvimento. Não basta acabar com os abusos do sistema. É preciso mudar o próprio sistema. Hoje a parusia ou a vinda do reino se expressa na sustentabilidade da Vida no planeta Terra. O papa fez com que o próprio tema do próximo Sínodo da Amazônia seja Ecologia Integral e como objetivo da missão da Igreja.
Atualmente, ser rico para o amor ou para a fonte do amor (que nas tradições religiosas é Deus) é repartir e organizar a vida a partir de um projeto de partilha e de justiça que reorganizará a vida a partir do Bem Viver.
Choramos o assassinato dos dois caciques Wajãpi no Amapá e denunciamos a invasão da Terra indígena Wajãpi por 50 garimpeiros, sabe Deus sob ordem de quem, praticando violência e semeando destruição.
Esperamos que esse próximo Sínodo da Amazônia ajude o mundo inteiro a acordar para essa atrocidade cometida contra nossos irmãos indígenas e contra a Terra e a sociedade reunida no que ela tem de melhor possa recriar vida em um novo patamar de humanidade.
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A riqueza não é dividida, a riqueza divide
Um homem pede a Jesus para intervir a respeito de uma briga entre ele e seu irmão sobre a herança. De novo no evangelho tem alguém que chama Jesus para resolver um conflito. Este alguém não tem nome próprio no texto. Provavelmente porque cada um, cada uma de nós é chamado a identificar-se com esta personagem. Na pergunta sobre a divisão da herança aparece uma grande ilusão. A pergunta ilusória é sobre a divisão da riqueza. Este texto nos diz que a riqueza não dividida divide.
Jesus recusa, neste texto, o papel de mediador do conflito. Na perspectiva da grande ilusão da qual estes dois irmãos são vítimas, a de pensar que a riqueza que divide e violenta possa ser dividida, Jesus não quer ser considerado o juiz conciliador, mas o companheiro de caminhada que quer ajudar a entender e indicar os motivos que determinam o empobrecimento e os conflitos entre as pessoas. Estes motivos se juntam concretamente ao redor do egoísmo e da ganância.
São estes os dois sentimentos que habitam os irmãos deste texto do evangelho. Jesus fala deste sentimento de desejo sem entender o que é necessário desejar. A ilusão, de quem não conhece o que é verdadeiramente necessário e por isto pensa de encontrar no possuir a sua segurança.
Qual é nossa necessária necessidade? Esta é uma pergunta de fundo para a nossa vida.
Desde os tempos antigos da caminhada de libertação no Êxodo, nossos pais e nossas mães na fé tiveram que responder a esta pergunta. No tempo do deserto, no tempo da divisão do poder e da profunda defesa da Vida, seguindo o Deus Libertador, o Povo das tribos no caminho de libertação teve que aprender como dividir algo que não sabiam nomear e por isto chamaram “maná”. Tiveram que aprender a partilhar “segundo a necessidade”.
Lembramos também que, no Primeiro Testamento, uma tribo, a de Levi, a tribo dos homens e mulheres errantes e mendicantes de tenda em tenda, esta tribo não recebia nenhuma herança, nenhuma terra, exatamente para poder testemunhar, na transparência do corpo e das relações, que a única herança é Javé libertador.
Também no Segundo Testamento o contrário da ganância é a plenitude em Deus. Por isto, Paulo, na carta aos Colossenses 3,5, nos diz que a ganância é idolatria!
A ganância faz o nosso coração se dividir entre diferentes desejos. E um coração dividido é um coração idólatra, uma alma, transparência de corpo, que perdeu o necessário, isto é, o testemunhar em todo o respiro da Vida que a única herança é Javé Libertador!
Os bens não nos livram da morte
Neste texto do evangelho de Lucas, Jesus faz uma afirmação muito séria: “sua vida não depende de seus bens”. Como para dizer que uma pessoa não é segundo o que possui. Uma pessoa não é humana por causa de seus bens! A dignidade das pessoas não tem nada a ver com os bens que possuem! Para Jesus e seu movimento, existe uma condição profundamente humana que é “outra” em relação ao possuir.
Viver do necessário, ter a capacidade de dividir para poder multiplicar, ser transparência comunitária e ecumênica na nossa única herança que é Javé libertador de tod@s @s pequen@s e empobrecid@s, esse é o nosso caminhar no seguimento de Jesus!
Para mostrar como a prática da ganância é negativa, Jesus nos conta a parábola de um rico sem sabedoria, isto é, sem a capacidade de olhar com os olhos do essencial, que são os olhos de Deus no meio da História da Humanidade.
Este rico sem sabedoria acredita estar seguro por muitos anos, tendo acumulado muitos bens. Porém, na mesma noite lhe é pedida de volta sua própria vida. Nesta parábola, a abundância é muito presente. O homem é rico e a colheita é abundante. O homem rico pensa individualmente sobre o que irá fazer da colheita abundante. Mas só pensar consigo mesmo e não partilhar o pensamento leva a uma decisão egoista e insensata, que faz da bênção da abundância da colheita uma maldição. A bênção não pode ser de uso individual.
Uma reflexão individual que não é partilhada em comunidade pode nos levar, como no caso da parábola, a um programa de vida esvaziado de amor. Os bens não nos livram da morte e da nossa finitude. Aliás, podem nos impedir de viver na partilha, de aprender a viver do necessário para que ninguém passe necessidade.
Os bens podem não permitir que sejamos o que é nossa profunda vocação desde os mitos bíblicos de criação da Humanidade, isto é, sermos gente nua e sem vergonha deste “estado” primordial, a nudez, o que nos faz reconhecer o que gaguejamos com o nome de Deus, nossa única e verdadeira riqueza. Amém e amem, isto é, continuemos amando.